sábado, 13 de março de 2010

Iniciação científica 2

O interesse peculiar de um estudo sobre casos de paranóia, como no texto “Memória de um doente dos nervos”, é perceber como o psicótico organiza qualquer coisa em relação a outras. Qual se faz no estudo epistemológico, a apreensão de um discurso que não se enquadra no discurso simbólico-social, permite perceber a partir de que classificação, de que “lógica”, de qual relação entre “coisas, ou seja, de qual sentido, a classificação racional humana se constitui.
Cito, precisamente, esta referência à psicose, por ser, ultimamente, o significante do meu “pensar sobre a epistemologia”. Há uma disciplina obrigatória a nós, segundo ano, chamada “Epistemologia das Ciências Humanas”, de onde o docente Vladimir Safatle utiliza o estudo da paranóia para introduzir o estudo epistemológico. Dentre outras coisas, como citado, é em referência a este pensamento que hoje vou ordenando o meu raciocínio sobre a classificação humana de qualquer coisa. No entanto, quero citar abaixo a partir de quê este meu pensamento começou a se constituir.
Se se considera que a ordenação, sob um sentido, de qualquer coisa, é uma ordenação do humano, deve-se considerar que, fora de nossas mentes, nada teria um sentido. Seria, por vez, somente sentido e ordem o que haveria na mente humana, e o que não haveria, estaria ausente de qualquer relação; não podendo, sequer, ser dito, posto que a palavra já se constituí a si mesma sempre em relação a um sistema. Pois bem: se é assim, de onde partiria o raciocínio humano que se abstrai das coisas e as define como “coisas”? Penso que este é um problema bastante parecido ao dilema Spinoza/Descartes, onde Spinoza, o cito, diz que “Não pode haver na natureza duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributos”, já que, como explica, “Entendo por substância o que é em si e se concebe por si: isto é, aquilo cujo conceito não tem necessidade do conceito de outra coisa, do qual deve ser formado”. Ou seja: como seria possível, de um “mundo” ausente de sentido, partir uma vida, um organismo, capaz de dar o mesmo sentido a qualquer coisa? Se se crê, de fato, numa mente que ordena toda e qualquer coisa, a partir de uma relação entre estas coisas, tem-se que crer que “exista algo em todas as coisas que seja igual”. Tem-se que crer num mesmo que se torna base à classificação, que gradativa qualquer coisa em relação a ele próprio. Então: o que seria este “mesmo”?
Para tentar compreender o que poderia ser tal, parti do olhar sobre “o que definia o sentido das coisas”, e tive como crido que é em relação às pulsões sexuais, colocadas diante do futuro, e este futuro diante da morte, que os sentidos se constituem. Também, poder-se-ia utilizar o significado estrutural da cultura, mas, numa observação bastante apurada do mesmo, verificar-se-ia que ele também se constituí em relação a desejos sexuais e em relação à morte – já que se tem a doação de mulheres entre famílias para a sobrevivência da mesma.
Pois bem: os desejos sexuais estariam ligados à ordenação, ou à falta de ordenação? Estariam eles ligados ao “não-sentido” ou ao “sentido”? E a morte; a qual estaria ligada? Considerando-se, por exemplo, a palavra “amor”, que em si mesma diz de um sentimento, que o define, e que este sentimento está relacionado aos desejos sexuais, percebe-se que ela própria é uma classificação de algo indefinível, e, já que este sentimento está relacionado aos desejos sexuais em quando indefinição, o que resta para ajudara a criar morfologia ordenada desta palavra “amor” é a morte. Seria então a morte o que há de igual na vida e em todas as coisas? Não sei se se pode dizer que ela exista “impregnada” em qualquer coisa, como se fosse “algo”, mas o fato é que o homem se concebe como um ser finito em relação à morte. É desta situação existencial, desta abstração de si que pode até parecer como metafísica, que o homem parte para ordenar e definir – já que algo definido é algo “finito”.
Bem; mas para que se classifique qualquer coisa, é necessário que este “mesmo”, esta morte, exista de fato. Contudo, nós estamos vivos. A morte não existe no agora, já que agora estamos vivos. Ela só existe enquanto futuro, enquanto “vir a ser”. Neste sentido, o que há de igual na vida não “há”, somente “haverá”, e penso que é desta situação contraditória que a dialética se constitui. Porém, ainda falta uma explicação de onde, em que “lugar”, esta morte futura existe. Nas coisas ou no homem? Creio que, para falar sobre isso, devo retomar aos conceitos da dialética, “ser-em-si” e “ser-para-si”, na forma utilizada por Jean-Paul Sartre em seu livro “O Ser e o Nada”. É do estatuto existencial do homem “ser-para-si”, ser capaz de se abstrair e perder-se de si mesmo, sentido que não é nada. A singularidade humana não pode ser uma coisa que “é”, pois, para tanto, seria em relação a outras coisas, e não somente em si. E, como o estatuto de “ser alguma coisa” é sempre em relação a outras, a singularidade humana não pode “ser”, deve apenas “existir”. Ora, o “ser-para-si” se constitui como ausência de ser, e a morte enquanto balizadora da ordenação das coisas, também é ausente, já que é justamente base a “qualquer coisa ser”, não podendo ser em si mesma algo definido – aqui retomo ao “vir a ser” da morte. Se ela, como o “ser-para-si” da definição sartreana, é algo que não é, talvez ela seja, justamente, este “ser-para-si”; e o lugar onde exista não é mesmo nas coisas, e sim no próprio humano.
O meu desejo é desenvolver um trabalho a partir disso, desta situação existencial do homem de onde ele parte para classificar as coisas, acabando por chegar às epistemologias, que, de alguma forma, são classificações de coisas. Não queria muito aprofundar-me neste texto na psicose, mas, como a citei no começo do mesmo, penso que deveria dar uma explicação sobre como concebo a morte na mesma. Por ela – a psicose – ser às vezes caracterizada por uma dificuldade de ordenação discursiva, talvez poder-se-ia supor, a partir deste presente texto, que há uma “ausência de balizamento das coisas pela morte no sujeito psicótico”. Obviamente, não é tão simples assim. E, obviamente, o pensamento de um psicótico é tão abstrativo como de um neurótico. A diferença que vejo, é a capacidade do neurótico de se situar como distante das coisas, através de um “núcleo” social identitatório, não entrando nas vias da capacidade de raciocínio lógico.
Espero que seja de seu grado este texto.

Guilherme Célio, 13 de março de 10.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Base a uma iniciação científica

O “eu” só pode se definir pelo outro, por ser próprio do “ser” a contextualização. É impossível ser em si mesmo, já que se é em relação a toda uma estrutura. Assim, o valor próprio do outro se refere ao valor de ser – em uma forma de negação deste outro, pois, supõe-se para ser, que o outro seja como se supõe.

Toda a constituição da verdade, parte, acredito, do mesmo princípio da constituição do eu. O eu, de alguma forma, é uma verdade; e qualquer verdade, no momento em que ela é, se torna o eu. Ora, imaginar o desejo e as pulsões como sob uma ordem, é imaginar, já, uma forma, que se estabelece a si mesma, em relação a uma estrutura que a define como tal. Então, se se supõe que qualquer valor cultural primeiramente é uma sublimação de uma pulsão, esta pulsão deve estar ausente de qualquer forma ou ordenação, sendo estes dois somente uma conseqüência do valor cultural. Contudo, de onde partiria esta transformação das pulsões? Penso que só possa partir de alguma coisa caracteristicamente igual em qualquer ser humano, antes mesmo das definições culturais, e que possa, simplesmente por ser igual em todos os homens, ser base à classificação de qualquer coisa, gerando a cultura. Pois bem: e o que serviria a isso?

Quando se isola qualquer valor cultural, observa-se (não nos moldes destas ultimas palavras, que parecem um tanto quanto “empíricas”) que, além do valor sexual que qualquer valor cultural é balizado, uma outra coisa. Bem... se esta “outra coisa” estivesse ausente, não se poderia falar em forma das pulsões, já que estas seriam simplesmente como sempre foram. Então: o que seria esta “outra coisa”? Além da referência sexual, o que dá sentido a qualquer ato, pensamento, expressão da vida, é o futuro – futuro este sabido como mais próximo à morte. É dela, da morte, que o valor cultural retira uma “parte” de sua essência. Todavia, para tanto, dever-se-ia supor que esta morte, que quando a pensamos simplesmente existe enquanto futuro existisse no presente, no aqui e agora, e existisse no presente de todos os homens. Para ela ser “o igual que possibilita a comparação de todas as coisas”, ela deveria existir em cada presente, e não somente como futuro. Pois bem: e não seria este “futuro que virá” a própria morte que existe no presente? Se assim, seria uma “coisa”. Que “coisa”? Somente creio que consiga dizer “base para a classificação de qualquer coisa”. Então, o que é a base a qualquer coisa ser classificada? Penso que só possa ser um “sentimento” de “ser um não-ser”; como no existencialismo, um nada. A morte seria, assim, o que do homem não tem definição, mas que se sente como necessitado de definição – um vazio. E este vazio – metaforicamente – seria preenchido de pulsão, se tornando alguma forma.

Vejamos... Pode-se assim, então, dizer, que a morte é o que é igual na vida. Mas, pensemos: o que é esta igualdade? Mesmo a morte sendo esta igualdade, ela não deixa de ser só futuro, de não existir no agora, de só existir no agora como algo que existirá no futuro. Ela, de alguma forma, não existe, já que estamos vivos. Penso que é desta a essência da dialética, e de qualquer formação cultural.

Finalmente entrando na cultura! Como expus no primeiro parágrafo do texto, o “eu” é uma relação com os outros, um sistema do eu. E, sendo assim, a constituição de qualquer cultura deve se construir de maneira direta, no sentido em que se constituiu as culturas primitivas, aquelas relacionadas às trocas de reciprocidade, da doação do dom. É nisso que quero que se constitua meu trabalho de iniciação científica. Nesta formação holística das sociedades, e depois o aparecimento do capitalismo, com sua ideologia própria individualista, que pressupõe a existência de um “eu” em si mesmo, negando a própria base da sociedade. Quero partir disso para fazer uma avaliação epistemológica dos campos dos saberes – mesmo com o risco de estar sendo arbitrário ao campo do saber psicanalítico ao qual me baseio.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Intenção e Pulsão – um ensaio sobre a ausência e a forma

Introdução

A ordem biológica de organização – que talvez não possa ser chamada de “ordem” – é uma coisa diferente da relação cultural de causa/efeito. Na passagem natureza/cultura, o significado – significado em si, a própria forma do “para-si” – surge ao mesmo momento em que o sujeito se reconhece como alguém; e, sendo este reconhecimento anterior à própria sociedade, ou seja, sem um valor simbólico identitatório, ele é a própria forma de não-ser forma, de ser algo que não sabe o que é. Assim, o “para-si” aparece como uma falta, estabelecido como algo que é algo, mas que não é – sendo base a ser. O que quero defender é que este “ser um não-ser” é a própria morte. Ela não existe, já que estamos vivos, mas é uma falta no sentido em que sabemos que é morte.

Para Freud instinto de vida e instinto de morte acontecem em todas as formas vivas. Penso que – sem deixar de concordar com seu pensamento – antes da vida, da organização conjunta da matéria, o que há são simples inércias de causa e efeito, capazes de serem codificadas já que são a própria lógica de causa e efeito. Contudo, quando estas inércias se articulam num todo harmônico (numa célula, por exemplo), não é a simples probabilidade das inúmeras causas e efeitos que mantém firmes estas mesmas causas e efeitos numa harmonia, e sim uma outra coisa, que tensiona e estabelece esta relação: a própria vida. Vejo-a como um tensionador sem sentido, que apenas é força de tensionar e organizar as forças inertes neste todo harmônico.

Não é o todo que estabelece uma lógica; são suas partes as únicas lógicas, e ele, em si, é constituído por uma forma que vai ao encontro à lógica “individual” das matérias de continuar em repouso. Creio que o instinto de morte é esta própria força (lógica) inerte, e o instinto de vida é este tensionador sem sentido.

Ao nível de humano, e relação social, há um acumulo desta inércia com a percepção de si. Este acumulo, creio eu, não é mais instinto de morte e sim pulsão de morte, por se referir à psique.

A noção sentida nesta falta de “ser um não-ser” vem, de um lado, da própria natureza de causa e efeito do instinto de morte (ser), e de outro, da falta do instinto de vida (não-ser) que tensiona numa forma.

Significado e significante

Não desenvolverei explicando o pensamento estruturalista do significado inconsciente, mas quero dizer que o mesmo é a própria pulsão de morte, na sua relação de causa/efeito.

A falta que surge é a própria estrutura existencial em relação à morte e o “saber-se finito” – retiro da fenomenologia. E, qualquer significante deste significado, é uma forma tensionada num todo deste significado. Lacan fala da prevalência do significante sobre o significado, e penso que isso reside no fato de, justamente, o significante ser tensionado, carregar em si uma tensão, carregar em si a vida. A exemplo básico e simples, teríamos a diferença entre a escrita e a fala. Com a escrita – que também é um significante, mas um significante mais “próximo” ao significado (desenvolverei isto melhor) – podemos dizer qualquer coisa, podemos estabelecer qualquer lógica, já que ela é uma atividade sem a presença do Outro, e já que é muito próxima ao significado – como a estrutura lingüística de Saussure. Contudo, a fala (significante da estrutura lingüística) não obedece à mesma regra. Nunca com a fala podemos dizer qualquer coisa, pois sempre falamos a alguém. E, por ser referido a alguém, deve estar organizado de uma forma possível de compartilhamento, e é por isso que a fala carrega mais vida que a escrita.

Seguindo esta mesma lógica, a eficácia simbólica reside em o significante – por carregar mais vida que o significado, que em ultima instância sequer tem vida – conseguir comunicar com a vida do próprio corpo, inserindo e estruturando o mesmo no significado da cultura.


Antítese

Disse atrás que o inconsciente estrutural de Lévi-Strauss é a própria pulsão de morte. Bem, confesso que exagerei. O significado inconsciente, base a toda e qualquer sociedade, firma-se como uma estrutura base à própria lógica. Ora, toda lógica tem como base causa e efeito, e o que está por traz das estruturas não pode ser outra coisa senão o conjunto de causa/efeito, e não mais a pulsão de morte, que é só continuidade desta causa/efeito, mas que só é assim por ser, justamente, continuidade. Ser algo, a noção de ser está referida a esta inércia, pois se é por ser isso algo lógico. Continuar a ser, como forma de verdade, é continuo do “ser por ser lógico ser”, e é esta uma atuação da pulsão de morte, pois é simples inércia de ser. Todavia, a própria verdade – por ser estruturada como tal – carrega um pouco da tensão da vida. Vejo a formação da verdade paralela à formação da célula: lógica de causa e efeito (ser), construção significante tensionada (célula), inércia “sobrada” do que foi tensionado – sendo somente vontade de assim, sem mais tensão, continuar a ser – (instinto de morte). Então, o ato humano de querer-se sob o signo de uma verdade, não passa de lógica de causa/efeito incapturada pela tensão.

O que baliza o significante, o que faz o homem gemer, tendo ao nível de “poder” – ou melhor, que o deixa “podendo” só com o medo – é a morte. Diferente de como pensava, a morte diferencia-se da pulsão de morte por ser ausência de pulsão, pois ela não existe, é somente falta. Não existe um “impulso” a se ver a morte, ela aparece na falta de impulsos. A percepção de si, sem um valor de percepção, ou melhor, a percepção de como um nada, é o que é a morte. Ela não é mais que isso, não é mais que nossa falta, nossa ausência, pois ela não existe, visto que estamos vivos.

O reconhecimento primeiro deve ser ausência de impulso, pois, se se falasse de pulsão, dever-se-ia falar de intencionalidade, a qual deveria ser formada antes mesmo desta suposta pulsão. Deveria-se falar, para tanto, de metafísica, posto que, a associação lógica de “ter e ser tudo” e “existência do outro”, seria primeira, e seria por ela própria que o sujeito se reconheceria. Esta é a validade do conhecimento científico, mas o que quero propor é que esta própria razão é fruto de uma intencionalidade, que vem depois do instinto. E, a única forma que vejo para explicar a visão de si – sem a primazia da razão – é que esta instaura a própria razão de causa/efeito, no sentido que é ausência de pulsão, no sentido que é falta.

Há um tempo atrás desenvolvi um texto que agora me contraponho. Penso que a melhor forma de me fazer entender é colocando-o e, justamente, fazendo este contraponto:

“As pulsões que levam o sujeito a se relacionarem uns com os outros, nascem por necessidades estruturais conseqüentes de um apercebimento de si; todo significado se remete a isso e a relação com o outro. Assim, as únicas coisa que são significáveis no humano, as únicas coisas que exigem ser significadas, é toda e qualquer coisa que se englobe nisso. Contudo, o que do humano não é necessário de significação, justamente por não ser essencial à vivência social, sendo, portanto, impossível de ser classificável? O que é significável no humano? O que é a fonte de sentidos a tudo – a tudo que é sentido? E o que não é isso?

Penso que todo sentido se refere a uma pulsão de morte, no sentido que é balizado pela morte, e o não-sentido é fonte à pulsão de vida. É um singular incapturável, impossível de relação mortal, sendo a única coisa que nos mantém vivos” (...)

Bem, penso que este ultimo parágrafo deva ser trocado. Todo sentido não se refere, exatamente, a uma pulsão de morte. Esta tem sentido, por também estar referida à mesma coisa a qual o sentido se refere. Todo sentido está referido à morte, à ausência de pulsões, ao estado de múltiplas causas e efeitos. Contudo, ainda salvo a idéia do não-sentido estar referido à vida. No estado de “ser um não-ser”, por um impulso vital, o sujeito tensiona um significante e se torna um “ser”. Porém, este “ser” está referido à morte, posto que é lógico. Se o indivíduo “agarra-o”, tomando este significante como verdade e dogma, temos a atuação da pulsão de morte, que tenta “travar”, com esta capa de “ser”, a sua parte (vinda ainda da morte, da falta – e que só a vida pode atuar) do “não-ser”. “Ser” e “não-ser” são constâncias da morte, e as pulsões de vida e de morte são escolhas quanto ao pólo desta inconstância. Por falarmos de psique e sua atuação cultural, a pulsão de morte virá conseqüente a de vida (se o sujeito a escolher) pois é necessário, primeiramente, a construção do significante.

Continuando o texto:

(...) “Diante disso, pode-se pensar que as coisas capturadas pelo sentido, o são por algo em comum: este algo é justamente a morte. Ela é o que é igual em todas as coisas comparáveis, e portanto é o que as liga. Não há morte no incomparável. Porém, percebe-se que em estados criativos, onde a pulsão de vida está atuando, existem coisas que se assemelham. Seria isso ainda uma semelhança mortal? A morte é o que há de igual na vida, e assim, esta semelhança (se fosse pela morte) assim seria pela relativização em relação a ela. Seria relacionado a algo igual, e este igual seria o discriminador das coisas. Sendo discriminador, existiria um padrão de valores que teriam a morte como o pólo mais alto, e poder-se-ia dizer que algumas coisas são mais importantes que as outras. Todavia, sob a pulsão de vida não há uma discriminação de acordo com o seu valor, pois nesta semelhança aceita-se a diferença. Então, o que é igual não é a morte, é a vida. É igual não ser igual, ser singular.”

De fato, a morte é o que há de igual em todas as coisas comparáveis, e portanto é o que as liga. A pulsão de vida, justamente por ter uma natureza impossível de dizer, não carrega morte – ao contrário da pulsão de morte. Mas, ela só existe na morte. Ela é “não-ser” na morte, ela aparece como tensionadora da morte, e por isso as coisas vivem. Retomando ao quanto “ela é o que é igual em todas as coisas comparáveis”, queria acrescentar que aqui não é só a morte, levando-se em conta que “tais coisas” são culturais, e sim a pulsão de morte, pois, sendo culturais, deve-se perceber que a vida já atuou, e esta visão comparativa não passa de uma perversão movida pela pulsão de morte. Explicando-me melhor: A comparação das coisas só pode ser feita em detrimento de algo igual em todas elas, diferenciando-se uma das outras apenas pelo “grau” de aparecimento deste igual. Estou certo que, para a entrada na vivência cultural, apenas algumas coisas são necessárias a se tornarem comparáveis, enquanto que outras, por suas inutilidade, sequer temos consciência. Penso que esta comparação se faz com o ato psíquico de capturá-las como sentido, depois de tornar-se consciente na forma de significante, atribuindo valores, e definindo quais são melhores. Esta definição – que vem depois do significante – não pode não ser algo relacionado à pulsão de morte, que discrimina excluindo a singularidade, atribuindo utilidade. O Sujeito, com este ato, se vê livre de todas as tensões constitutivas das coisas vivas, não tendo de lidar com a imensa diferença, já que mata a peculiaridade, e usa da vida das mesmas apenas para que continuem vivas. Adianto-me agora quanto ao final do texto, onde “as coisas se assemelham” sob a pulsão de vida. Creio que não deva ser nada mudado, pois, mesmo quando o escrevi, partindo da premissa que a morte e a pulsão de morte são iguais, sobre a pulsão de vida – que foi o que me levou a escrever – nada tenho que mudar. Foi justamente por experiências em estados criativos que vi o quanto as coisas se assemelham, sem deixar de serem diferentes, e foi por tais experiências que decidi escrever o texto.


Síntese

Às vezes eu temo ser redundante. Retomar o mesmo assunto, as mesmas palavras, como se eu quisesse esta igualdade. Bem, não minto que todo o meu texto poderia ser resumido, mas já fiz tanto desta forma, que até começo a achar que o transformar em poucas palavras, ao contrario de dizer em muitas, é que, na verdade, é querer uma igualdade. Bem, como defendo, a singularidade não existe na lógica! Poderia, como Spinoza, transformar à maneira axiomática das geômetras, mas confesso que este ato é ir de encontro à própria filosofia da única substância, e, portanto prefiro a Nietzsche, e a sua fala poética. Mas agora, vou a Lacan.

A existência do Outro, inaugura-me, ao nível de saber, na morte. Sei-me na morte sem ela existir. Uma morte imaginária, impulsora da dialética. Mas a morte não existe. Nunca irá existir, e, portanto, deve-se mentir: na falta de ser, na inauguração de si pelo outro, decido mentir dizendo que a morte existe. Nasce, desta forma, a verdade. Atrás falei da verdade, seguindo o sentido do pensamento que desenvolvia. Mas não vou mentir: apenas a vi, daquela forma, pela forma epistemológica da psicanálise lacaniana, e é por isso que falo (a morte) da forma tratada (ou como eu entendi) por Lacan. É uma aproximação.

Quando eu olho a falta e dou-a o nome de “morte”, eu minto – porque estou vivo – e crio o primeiro significante, a primeira verdade. É uma verdade que atravessa toda a vida, e ai de alguma sociedade que não acreditar nesta mentira! Ela atravessa, e as escolhas mediadas pela pulsão de vida e pela pulsão de morte, se dividem e nascem a partir dela: Ou eu aceito e esqueço desta verdade, ou eu a nego e a lembro a todo momento. A morte é a proibição do incesto mental.

Um dos dilemas antropológicos, parecido com o dilema Marx/Hegel, é quando acontece o processo de subjetivação. Por exemplo, seguindo a linha de pensamento jusnaturalista, de Hobbes a Hegel, o processo de subjetivação acontece anterior à sociedade, e, portanto, a mesma se constituí a partir de um contrato. Em contrapartida, partindo da linha de pensamento aristotélico, que passa pelo romantismo, e chega a pensadores como Durkheim, a constituição social se faz de uma maneira holística, onde os conteúdos são primeiros que a subjetivação. Bem, me posiciono de uma maneira paralela a Lévi-Strauss, para quem é de maneira inconsciente que o firmamento simbólico da passagem natureza/cultura se faz. Penso que (como expus no começo do texto) que a subjetivação, a visão da falta, acontece anterior à sociedade, mas – como bem diz o nome – na forma de falta. O “ser um não-ser” é anterior à sociedade, mas o saber-se social só se faz depois da sociedade, através de valores simbólicos. O que falo não é avanço nenhum, e um pouco de raciocínio seria necessário – se esta problemática afetasse quem lê – para perceber a minha posição. Só que este é um problema que no momento me chama a atenção, e que penso que seja evidenciador da própria dualidade humana.


Deus e liberdade

Deus é a morte. Acompanha cada pensamento, cada ato, e aparece quando olhamos a nós mesmos. É um molde ao ideal de eu, mas sem uma forma, como a própria forma de “ser um não-ser”. Deus é o que somos quando olhamos o que somos, é a visão da morte, é a própria morte, que não existe simplesmente por estarmos vivos. Deus é o que está antes da vida, e de onde partimos, de onde somos obrigados a partir, pelo simples fato de não estarmos mortos. Estamos fadados a estarmos vivos, estamos fadados ao nosso desejo, estamos fadados a sermos singulares, e, portanto livres, já que é impossível de sabermos de nós, de nos definir e assim nos compartilhar. A responsabilidade e a liberdade não vêm da capacidade racional de mensurar as causas e os efeitos. Isso todo mundo tem, e é a forma de “ser” do ser humano. Elas vêm do não-sentido, elas não tem sentido, são o nosso próprio desejo. É pela vida que agimos e escolhemos – pelo o que somos. Se fosse pela morte e pelo raciocínio, a ordem seria a mais racional possível, e, de fato, a liberdade “conquistada” – à maneira individualista – seria a correta. Mas é por nossa loucura que damos nossos nomes, que nos compartilhamos, que utilizamos da lógica. Responsabilidade é ação pura e não regra. Deus é a morte e nós a vida. Deus é um irresponsável que tudo pode fazer – menos a vida.