quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Intenção e Pulsão – um ensaio sobre a ausência e a forma

Introdução

A ordem biológica de organização – que talvez não possa ser chamada de “ordem” – é uma coisa diferente da relação cultural de causa/efeito. Na passagem natureza/cultura, o significado – significado em si, a própria forma do “para-si” – surge ao mesmo momento em que o sujeito se reconhece como alguém; e, sendo este reconhecimento anterior à própria sociedade, ou seja, sem um valor simbólico identitatório, ele é a própria forma de não-ser forma, de ser algo que não sabe o que é. Assim, o “para-si” aparece como uma falta, estabelecido como algo que é algo, mas que não é – sendo base a ser. O que quero defender é que este “ser um não-ser” é a própria morte. Ela não existe, já que estamos vivos, mas é uma falta no sentido em que sabemos que é morte.

Para Freud instinto de vida e instinto de morte acontecem em todas as formas vivas. Penso que – sem deixar de concordar com seu pensamento – antes da vida, da organização conjunta da matéria, o que há são simples inércias de causa e efeito, capazes de serem codificadas já que são a própria lógica de causa e efeito. Contudo, quando estas inércias se articulam num todo harmônico (numa célula, por exemplo), não é a simples probabilidade das inúmeras causas e efeitos que mantém firmes estas mesmas causas e efeitos numa harmonia, e sim uma outra coisa, que tensiona e estabelece esta relação: a própria vida. Vejo-a como um tensionador sem sentido, que apenas é força de tensionar e organizar as forças inertes neste todo harmônico.

Não é o todo que estabelece uma lógica; são suas partes as únicas lógicas, e ele, em si, é constituído por uma forma que vai ao encontro à lógica “individual” das matérias de continuar em repouso. Creio que o instinto de morte é esta própria força (lógica) inerte, e o instinto de vida é este tensionador sem sentido.

Ao nível de humano, e relação social, há um acumulo desta inércia com a percepção de si. Este acumulo, creio eu, não é mais instinto de morte e sim pulsão de morte, por se referir à psique.

A noção sentida nesta falta de “ser um não-ser” vem, de um lado, da própria natureza de causa e efeito do instinto de morte (ser), e de outro, da falta do instinto de vida (não-ser) que tensiona numa forma.

Significado e significante

Não desenvolverei explicando o pensamento estruturalista do significado inconsciente, mas quero dizer que o mesmo é a própria pulsão de morte, na sua relação de causa/efeito.

A falta que surge é a própria estrutura existencial em relação à morte e o “saber-se finito” – retiro da fenomenologia. E, qualquer significante deste significado, é uma forma tensionada num todo deste significado. Lacan fala da prevalência do significante sobre o significado, e penso que isso reside no fato de, justamente, o significante ser tensionado, carregar em si uma tensão, carregar em si a vida. A exemplo básico e simples, teríamos a diferença entre a escrita e a fala. Com a escrita – que também é um significante, mas um significante mais “próximo” ao significado (desenvolverei isto melhor) – podemos dizer qualquer coisa, podemos estabelecer qualquer lógica, já que ela é uma atividade sem a presença do Outro, e já que é muito próxima ao significado – como a estrutura lingüística de Saussure. Contudo, a fala (significante da estrutura lingüística) não obedece à mesma regra. Nunca com a fala podemos dizer qualquer coisa, pois sempre falamos a alguém. E, por ser referido a alguém, deve estar organizado de uma forma possível de compartilhamento, e é por isso que a fala carrega mais vida que a escrita.

Seguindo esta mesma lógica, a eficácia simbólica reside em o significante – por carregar mais vida que o significado, que em ultima instância sequer tem vida – conseguir comunicar com a vida do próprio corpo, inserindo e estruturando o mesmo no significado da cultura.


Antítese

Disse atrás que o inconsciente estrutural de Lévi-Strauss é a própria pulsão de morte. Bem, confesso que exagerei. O significado inconsciente, base a toda e qualquer sociedade, firma-se como uma estrutura base à própria lógica. Ora, toda lógica tem como base causa e efeito, e o que está por traz das estruturas não pode ser outra coisa senão o conjunto de causa/efeito, e não mais a pulsão de morte, que é só continuidade desta causa/efeito, mas que só é assim por ser, justamente, continuidade. Ser algo, a noção de ser está referida a esta inércia, pois se é por ser isso algo lógico. Continuar a ser, como forma de verdade, é continuo do “ser por ser lógico ser”, e é esta uma atuação da pulsão de morte, pois é simples inércia de ser. Todavia, a própria verdade – por ser estruturada como tal – carrega um pouco da tensão da vida. Vejo a formação da verdade paralela à formação da célula: lógica de causa e efeito (ser), construção significante tensionada (célula), inércia “sobrada” do que foi tensionado – sendo somente vontade de assim, sem mais tensão, continuar a ser – (instinto de morte). Então, o ato humano de querer-se sob o signo de uma verdade, não passa de lógica de causa/efeito incapturada pela tensão.

O que baliza o significante, o que faz o homem gemer, tendo ao nível de “poder” – ou melhor, que o deixa “podendo” só com o medo – é a morte. Diferente de como pensava, a morte diferencia-se da pulsão de morte por ser ausência de pulsão, pois ela não existe, é somente falta. Não existe um “impulso” a se ver a morte, ela aparece na falta de impulsos. A percepção de si, sem um valor de percepção, ou melhor, a percepção de como um nada, é o que é a morte. Ela não é mais que isso, não é mais que nossa falta, nossa ausência, pois ela não existe, visto que estamos vivos.

O reconhecimento primeiro deve ser ausência de impulso, pois, se se falasse de pulsão, dever-se-ia falar de intencionalidade, a qual deveria ser formada antes mesmo desta suposta pulsão. Deveria-se falar, para tanto, de metafísica, posto que, a associação lógica de “ter e ser tudo” e “existência do outro”, seria primeira, e seria por ela própria que o sujeito se reconheceria. Esta é a validade do conhecimento científico, mas o que quero propor é que esta própria razão é fruto de uma intencionalidade, que vem depois do instinto. E, a única forma que vejo para explicar a visão de si – sem a primazia da razão – é que esta instaura a própria razão de causa/efeito, no sentido que é ausência de pulsão, no sentido que é falta.

Há um tempo atrás desenvolvi um texto que agora me contraponho. Penso que a melhor forma de me fazer entender é colocando-o e, justamente, fazendo este contraponto:

“As pulsões que levam o sujeito a se relacionarem uns com os outros, nascem por necessidades estruturais conseqüentes de um apercebimento de si; todo significado se remete a isso e a relação com o outro. Assim, as únicas coisa que são significáveis no humano, as únicas coisas que exigem ser significadas, é toda e qualquer coisa que se englobe nisso. Contudo, o que do humano não é necessário de significação, justamente por não ser essencial à vivência social, sendo, portanto, impossível de ser classificável? O que é significável no humano? O que é a fonte de sentidos a tudo – a tudo que é sentido? E o que não é isso?

Penso que todo sentido se refere a uma pulsão de morte, no sentido que é balizado pela morte, e o não-sentido é fonte à pulsão de vida. É um singular incapturável, impossível de relação mortal, sendo a única coisa que nos mantém vivos” (...)

Bem, penso que este ultimo parágrafo deva ser trocado. Todo sentido não se refere, exatamente, a uma pulsão de morte. Esta tem sentido, por também estar referida à mesma coisa a qual o sentido se refere. Todo sentido está referido à morte, à ausência de pulsões, ao estado de múltiplas causas e efeitos. Contudo, ainda salvo a idéia do não-sentido estar referido à vida. No estado de “ser um não-ser”, por um impulso vital, o sujeito tensiona um significante e se torna um “ser”. Porém, este “ser” está referido à morte, posto que é lógico. Se o indivíduo “agarra-o”, tomando este significante como verdade e dogma, temos a atuação da pulsão de morte, que tenta “travar”, com esta capa de “ser”, a sua parte (vinda ainda da morte, da falta – e que só a vida pode atuar) do “não-ser”. “Ser” e “não-ser” são constâncias da morte, e as pulsões de vida e de morte são escolhas quanto ao pólo desta inconstância. Por falarmos de psique e sua atuação cultural, a pulsão de morte virá conseqüente a de vida (se o sujeito a escolher) pois é necessário, primeiramente, a construção do significante.

Continuando o texto:

(...) “Diante disso, pode-se pensar que as coisas capturadas pelo sentido, o são por algo em comum: este algo é justamente a morte. Ela é o que é igual em todas as coisas comparáveis, e portanto é o que as liga. Não há morte no incomparável. Porém, percebe-se que em estados criativos, onde a pulsão de vida está atuando, existem coisas que se assemelham. Seria isso ainda uma semelhança mortal? A morte é o que há de igual na vida, e assim, esta semelhança (se fosse pela morte) assim seria pela relativização em relação a ela. Seria relacionado a algo igual, e este igual seria o discriminador das coisas. Sendo discriminador, existiria um padrão de valores que teriam a morte como o pólo mais alto, e poder-se-ia dizer que algumas coisas são mais importantes que as outras. Todavia, sob a pulsão de vida não há uma discriminação de acordo com o seu valor, pois nesta semelhança aceita-se a diferença. Então, o que é igual não é a morte, é a vida. É igual não ser igual, ser singular.”

De fato, a morte é o que há de igual em todas as coisas comparáveis, e portanto é o que as liga. A pulsão de vida, justamente por ter uma natureza impossível de dizer, não carrega morte – ao contrário da pulsão de morte. Mas, ela só existe na morte. Ela é “não-ser” na morte, ela aparece como tensionadora da morte, e por isso as coisas vivem. Retomando ao quanto “ela é o que é igual em todas as coisas comparáveis”, queria acrescentar que aqui não é só a morte, levando-se em conta que “tais coisas” são culturais, e sim a pulsão de morte, pois, sendo culturais, deve-se perceber que a vida já atuou, e esta visão comparativa não passa de uma perversão movida pela pulsão de morte. Explicando-me melhor: A comparação das coisas só pode ser feita em detrimento de algo igual em todas elas, diferenciando-se uma das outras apenas pelo “grau” de aparecimento deste igual. Estou certo que, para a entrada na vivência cultural, apenas algumas coisas são necessárias a se tornarem comparáveis, enquanto que outras, por suas inutilidade, sequer temos consciência. Penso que esta comparação se faz com o ato psíquico de capturá-las como sentido, depois de tornar-se consciente na forma de significante, atribuindo valores, e definindo quais são melhores. Esta definição – que vem depois do significante – não pode não ser algo relacionado à pulsão de morte, que discrimina excluindo a singularidade, atribuindo utilidade. O Sujeito, com este ato, se vê livre de todas as tensões constitutivas das coisas vivas, não tendo de lidar com a imensa diferença, já que mata a peculiaridade, e usa da vida das mesmas apenas para que continuem vivas. Adianto-me agora quanto ao final do texto, onde “as coisas se assemelham” sob a pulsão de vida. Creio que não deva ser nada mudado, pois, mesmo quando o escrevi, partindo da premissa que a morte e a pulsão de morte são iguais, sobre a pulsão de vida – que foi o que me levou a escrever – nada tenho que mudar. Foi justamente por experiências em estados criativos que vi o quanto as coisas se assemelham, sem deixar de serem diferentes, e foi por tais experiências que decidi escrever o texto.


Síntese

Às vezes eu temo ser redundante. Retomar o mesmo assunto, as mesmas palavras, como se eu quisesse esta igualdade. Bem, não minto que todo o meu texto poderia ser resumido, mas já fiz tanto desta forma, que até começo a achar que o transformar em poucas palavras, ao contrario de dizer em muitas, é que, na verdade, é querer uma igualdade. Bem, como defendo, a singularidade não existe na lógica! Poderia, como Spinoza, transformar à maneira axiomática das geômetras, mas confesso que este ato é ir de encontro à própria filosofia da única substância, e, portanto prefiro a Nietzsche, e a sua fala poética. Mas agora, vou a Lacan.

A existência do Outro, inaugura-me, ao nível de saber, na morte. Sei-me na morte sem ela existir. Uma morte imaginária, impulsora da dialética. Mas a morte não existe. Nunca irá existir, e, portanto, deve-se mentir: na falta de ser, na inauguração de si pelo outro, decido mentir dizendo que a morte existe. Nasce, desta forma, a verdade. Atrás falei da verdade, seguindo o sentido do pensamento que desenvolvia. Mas não vou mentir: apenas a vi, daquela forma, pela forma epistemológica da psicanálise lacaniana, e é por isso que falo (a morte) da forma tratada (ou como eu entendi) por Lacan. É uma aproximação.

Quando eu olho a falta e dou-a o nome de “morte”, eu minto – porque estou vivo – e crio o primeiro significante, a primeira verdade. É uma verdade que atravessa toda a vida, e ai de alguma sociedade que não acreditar nesta mentira! Ela atravessa, e as escolhas mediadas pela pulsão de vida e pela pulsão de morte, se dividem e nascem a partir dela: Ou eu aceito e esqueço desta verdade, ou eu a nego e a lembro a todo momento. A morte é a proibição do incesto mental.

Um dos dilemas antropológicos, parecido com o dilema Marx/Hegel, é quando acontece o processo de subjetivação. Por exemplo, seguindo a linha de pensamento jusnaturalista, de Hobbes a Hegel, o processo de subjetivação acontece anterior à sociedade, e, portanto, a mesma se constituí a partir de um contrato. Em contrapartida, partindo da linha de pensamento aristotélico, que passa pelo romantismo, e chega a pensadores como Durkheim, a constituição social se faz de uma maneira holística, onde os conteúdos são primeiros que a subjetivação. Bem, me posiciono de uma maneira paralela a Lévi-Strauss, para quem é de maneira inconsciente que o firmamento simbólico da passagem natureza/cultura se faz. Penso que (como expus no começo do texto) que a subjetivação, a visão da falta, acontece anterior à sociedade, mas – como bem diz o nome – na forma de falta. O “ser um não-ser” é anterior à sociedade, mas o saber-se social só se faz depois da sociedade, através de valores simbólicos. O que falo não é avanço nenhum, e um pouco de raciocínio seria necessário – se esta problemática afetasse quem lê – para perceber a minha posição. Só que este é um problema que no momento me chama a atenção, e que penso que seja evidenciador da própria dualidade humana.


Deus e liberdade

Deus é a morte. Acompanha cada pensamento, cada ato, e aparece quando olhamos a nós mesmos. É um molde ao ideal de eu, mas sem uma forma, como a própria forma de “ser um não-ser”. Deus é o que somos quando olhamos o que somos, é a visão da morte, é a própria morte, que não existe simplesmente por estarmos vivos. Deus é o que está antes da vida, e de onde partimos, de onde somos obrigados a partir, pelo simples fato de não estarmos mortos. Estamos fadados a estarmos vivos, estamos fadados ao nosso desejo, estamos fadados a sermos singulares, e, portanto livres, já que é impossível de sabermos de nós, de nos definir e assim nos compartilhar. A responsabilidade e a liberdade não vêm da capacidade racional de mensurar as causas e os efeitos. Isso todo mundo tem, e é a forma de “ser” do ser humano. Elas vêm do não-sentido, elas não tem sentido, são o nosso próprio desejo. É pela vida que agimos e escolhemos – pelo o que somos. Se fosse pela morte e pelo raciocínio, a ordem seria a mais racional possível, e, de fato, a liberdade “conquistada” – à maneira individualista – seria a correta. Mas é por nossa loucura que damos nossos nomes, que nos compartilhamos, que utilizamos da lógica. Responsabilidade é ação pura e não regra. Deus é a morte e nós a vida. Deus é um irresponsável que tudo pode fazer – menos a vida.