sábado, 13 de março de 2010

Iniciação científica 2

O interesse peculiar de um estudo sobre casos de paranóia, como no texto “Memória de um doente dos nervos”, é perceber como o psicótico organiza qualquer coisa em relação a outras. Qual se faz no estudo epistemológico, a apreensão de um discurso que não se enquadra no discurso simbólico-social, permite perceber a partir de que classificação, de que “lógica”, de qual relação entre “coisas, ou seja, de qual sentido, a classificação racional humana se constitui.
Cito, precisamente, esta referência à psicose, por ser, ultimamente, o significante do meu “pensar sobre a epistemologia”. Há uma disciplina obrigatória a nós, segundo ano, chamada “Epistemologia das Ciências Humanas”, de onde o docente Vladimir Safatle utiliza o estudo da paranóia para introduzir o estudo epistemológico. Dentre outras coisas, como citado, é em referência a este pensamento que hoje vou ordenando o meu raciocínio sobre a classificação humana de qualquer coisa. No entanto, quero citar abaixo a partir de quê este meu pensamento começou a se constituir.
Se se considera que a ordenação, sob um sentido, de qualquer coisa, é uma ordenação do humano, deve-se considerar que, fora de nossas mentes, nada teria um sentido. Seria, por vez, somente sentido e ordem o que haveria na mente humana, e o que não haveria, estaria ausente de qualquer relação; não podendo, sequer, ser dito, posto que a palavra já se constituí a si mesma sempre em relação a um sistema. Pois bem: se é assim, de onde partiria o raciocínio humano que se abstrai das coisas e as define como “coisas”? Penso que este é um problema bastante parecido ao dilema Spinoza/Descartes, onde Spinoza, o cito, diz que “Não pode haver na natureza duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributos”, já que, como explica, “Entendo por substância o que é em si e se concebe por si: isto é, aquilo cujo conceito não tem necessidade do conceito de outra coisa, do qual deve ser formado”. Ou seja: como seria possível, de um “mundo” ausente de sentido, partir uma vida, um organismo, capaz de dar o mesmo sentido a qualquer coisa? Se se crê, de fato, numa mente que ordena toda e qualquer coisa, a partir de uma relação entre estas coisas, tem-se que crer que “exista algo em todas as coisas que seja igual”. Tem-se que crer num mesmo que se torna base à classificação, que gradativa qualquer coisa em relação a ele próprio. Então: o que seria este “mesmo”?
Para tentar compreender o que poderia ser tal, parti do olhar sobre “o que definia o sentido das coisas”, e tive como crido que é em relação às pulsões sexuais, colocadas diante do futuro, e este futuro diante da morte, que os sentidos se constituem. Também, poder-se-ia utilizar o significado estrutural da cultura, mas, numa observação bastante apurada do mesmo, verificar-se-ia que ele também se constituí em relação a desejos sexuais e em relação à morte – já que se tem a doação de mulheres entre famílias para a sobrevivência da mesma.
Pois bem: os desejos sexuais estariam ligados à ordenação, ou à falta de ordenação? Estariam eles ligados ao “não-sentido” ou ao “sentido”? E a morte; a qual estaria ligada? Considerando-se, por exemplo, a palavra “amor”, que em si mesma diz de um sentimento, que o define, e que este sentimento está relacionado aos desejos sexuais, percebe-se que ela própria é uma classificação de algo indefinível, e, já que este sentimento está relacionado aos desejos sexuais em quando indefinição, o que resta para ajudara a criar morfologia ordenada desta palavra “amor” é a morte. Seria então a morte o que há de igual na vida e em todas as coisas? Não sei se se pode dizer que ela exista “impregnada” em qualquer coisa, como se fosse “algo”, mas o fato é que o homem se concebe como um ser finito em relação à morte. É desta situação existencial, desta abstração de si que pode até parecer como metafísica, que o homem parte para ordenar e definir – já que algo definido é algo “finito”.
Bem; mas para que se classifique qualquer coisa, é necessário que este “mesmo”, esta morte, exista de fato. Contudo, nós estamos vivos. A morte não existe no agora, já que agora estamos vivos. Ela só existe enquanto futuro, enquanto “vir a ser”. Neste sentido, o que há de igual na vida não “há”, somente “haverá”, e penso que é desta situação contraditória que a dialética se constitui. Porém, ainda falta uma explicação de onde, em que “lugar”, esta morte futura existe. Nas coisas ou no homem? Creio que, para falar sobre isso, devo retomar aos conceitos da dialética, “ser-em-si” e “ser-para-si”, na forma utilizada por Jean-Paul Sartre em seu livro “O Ser e o Nada”. É do estatuto existencial do homem “ser-para-si”, ser capaz de se abstrair e perder-se de si mesmo, sentido que não é nada. A singularidade humana não pode ser uma coisa que “é”, pois, para tanto, seria em relação a outras coisas, e não somente em si. E, como o estatuto de “ser alguma coisa” é sempre em relação a outras, a singularidade humana não pode “ser”, deve apenas “existir”. Ora, o “ser-para-si” se constitui como ausência de ser, e a morte enquanto balizadora da ordenação das coisas, também é ausente, já que é justamente base a “qualquer coisa ser”, não podendo ser em si mesma algo definido – aqui retomo ao “vir a ser” da morte. Se ela, como o “ser-para-si” da definição sartreana, é algo que não é, talvez ela seja, justamente, este “ser-para-si”; e o lugar onde exista não é mesmo nas coisas, e sim no próprio humano.
O meu desejo é desenvolver um trabalho a partir disso, desta situação existencial do homem de onde ele parte para classificar as coisas, acabando por chegar às epistemologias, que, de alguma forma, são classificações de coisas. Não queria muito aprofundar-me neste texto na psicose, mas, como a citei no começo do mesmo, penso que deveria dar uma explicação sobre como concebo a morte na mesma. Por ela – a psicose – ser às vezes caracterizada por uma dificuldade de ordenação discursiva, talvez poder-se-ia supor, a partir deste presente texto, que há uma “ausência de balizamento das coisas pela morte no sujeito psicótico”. Obviamente, não é tão simples assim. E, obviamente, o pensamento de um psicótico é tão abstrativo como de um neurótico. A diferença que vejo, é a capacidade do neurótico de se situar como distante das coisas, através de um “núcleo” social identitatório, não entrando nas vias da capacidade de raciocínio lógico.
Espero que seja de seu grado este texto.

Guilherme Célio, 13 de março de 10.